Após 140 horas sem atendimento, mulher morre ao cair da maca
Jorge Gauthier | Redação CORREIO
O cheiro de moqueca de peixe com marisco dos almoços de domingo não será mais sentido na casa número 93 E da Rua do Congo, em Alto de Coutos, no subúrbio de Salvador.
Especialista no preparo do prato e na arte de reunir a família, a matriarca Aurenita Maria Oliveira Santos - 61 anos, cinco filhos e dois netos - foi vítima do caos no sistema de saúde de Salvador.
Dor e ausência: Aurenita e família reunidos Foto: Reprodução
No dia 19 de maio, ela teve uma crise de hipertensão em casa e foi levada por uma ambulância do Samu para o HGE, onde não havia vagas para internação. Quatro dias depois, a dona de casa estava em uma maca no Centro de Saúde Adroaldo Albergaria (Periperi) ainda à espera de um leito de UTI. Chegou ali após passar também inutilmente pelo Hospital João Batista Caribé.
Dona Aurenita, 61 anos, à espera de atendimento Foto: Antonio Queiros
Eram 9h do dia 23, quando o patisseiro Isael Oliveira Santos, 27 anos, um dos cinco filhos de Aurenita, pediu para uma enfermeira olhar a mãe enquanto ia ao banheiro. Quando voltou, Aurenita estava caída no chão.
No dia seguinte, internada finalmente no HGE, dona Nita, como era conhecida por vizinhos e amigos, morreu. Ela agora repousa embaixo de uma árvore na quadra C, cova 422 do Cemitério de Periperi.
Os filhos não se conformam com a perda de dona Nita, que fazia questão de manter a casa arrumada e cheia de plantas e ter a família por perto. Seus quatro filhos casados eram seus vizinhos em Alto dos Coutos.
“Perdi a jóia mais preciosa que eu tinha por uma imprudência médica. No dia que ela passou mal, ficamos percorrendo hospitais. No único com vaga, deixaram minha mãe cair da maca. Arrancaram o que eu tinha de mais importante”, indigna-se Eliaci, 27 anos, única filha mulher de Aurenita.
Nos últimos três anos, dona Nita começou a sofrer de hipertensão arterial pulmonar e passou a penar no sistema público de saúde. Mas foi ao precisar de um leito de UTI que a dona de casa conheceu a pior face do sistema: a falta de vagas, a falta de atendimento, a falta de atenção.
E, finalmente, a queda da maca. Depois do tombo, Aurenita passou a sentir fortes dores na cabeça e no abdômen, além da dificuldade em respirar. O filho Isael conta que os médicos plantonistas disseram que “a queda não tinha alterado nada no quadro da paciente”. Mas o atestado de óbito de Aurenita revela a causa mortis: traumatismo craniano.
Aurenita, uma mulher de muita fé
Os cultos das quartas e domingos no Salão do Reino das Testemunhas de Jeová (Coutos) foram lei durante 19 anos na vida de Aurenita. “Ela era a rocha espiritual da nossa família”, conta a filha Eliaci Oliveira Santos.
Apesar da fé e determinação da evangelizadora, que pregava de porta em porta pelas ruas do bairro, nos últimos dois anos a doença tirou sua alegria de viver. “Ela já estava sem muita energia, não podia mais fazer as atividades de dentro de casa, pois sentia muita falta de ar. Era triste vê-la tentando fazer algo e tendo que parar por causa da respiração”, completa a filha.
Dias antes de ser internada, Aurenita tinha dito a sua cunhada, Valdezi Batista Silva, que a acompanhava nas consultas médicas, que estava sentindo que iriamorrer. “Ela não tinha mais gosto em viver por causa da doença”, comenta o marido.
Como toda mulher batalhadora, sempre procurava ajudar os filhos. Ela tinha um único sonho: ver todos os filhos casados. “Infelizmente ela não conseguiu realizar esse desejo. Ela acabou morrendo sem me ver casar. Mas deve ter ficado contente com os meus irmãos”, lamenta Eliaci. Mesmo casados, os outros filhos de Aurenita não saíram de perto da mãe. Todos moram no mesmo bairro.
Ninguém lhe deu atenção
Cinco dias deitada em uma maca de 40 cm de largura com tubos de respiração artificial, alimentação regrada e medo de perder a vida. Este quadro compõe a situação vivida por Aurenita, que tinha 1,75 m e 80 kg, no Centro de Saúde Adroaldo Albergaria (Periperi).
Na sala de reanimação, ela teve seus últimos momentos de consciência e de contato com os filhos, que eram a sua razão de viver. “Ela saiu da cama dela quentinha, que ela tanto gostava, para mofar naquele lugar onde não era bem atendida. Tinha macas maiores em outros lugares do posto, mas os funcionários disseram que não poderiam trocar. Ficou esperando transferência, mas quando foi para o hospital já foi tarde demais”, lamenta Ismael Oliveira Santos, 29 anos, segurança, filho da dona de casa.
O calvário de Aurenita ganhou contornos de tragédia anunciada já na saída da sua residência, no começo da manhã ensolarada do dia 19 de maio, pelas mãos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Em função de obras de pavimentação que já acontecem na rua há mais de um ano, a equipe teve que parar a ambulância a 500m da casa. “Médicos e vizinhos ficaram se equilibrando pela rua esburacada e com esgoto aberto com minha mãe em cima da maca”, conta Ismael.
A ambulância do Samu percorreu dois hospitais mas, por falta de vaga, Aurenita teve que ser levada para o centro de saúde, onde conheceu as agruras da vida. Desde quando deu entrada na unidade de saúde, que realiza cerca de 600 atendimentos diariamente, a manutenção da vida de Aurenita dependia da transferência para um leito de unidade de terapia intensiva.
“A paciente veio para cá porque a central de regulação não identificou a presença de uma vaga disponível. Ela não poderia ter ficado aqui, pois não temos nenhuma estrutura para monitorar os pacientes pela grande rotatividade”, diz o gerente do posto de saúde, Gilberto Lucas.
Como explicar esta morte: descaso ou falta de leitos?
A voz mansa da dona de casa que odiava bagunça não será mais ouvida pelo marido Pedro Batista Santos. Ela acordou o pedreiro por 27 anos todos os dias às 5h.
“A falta de preparo da equipe médica do posto foi crucial para que a vida da minha mulher chegasse ao fim. Está sendo muito difícil perceber que não posso mais ficar ao lado dela”, comenta entristecido.
Pedro, que também trabalha como barbeiro nas horas vagas, dormiu todas as noites ao lado de Aurenita no período em que ela ficou internada no centro de saúde. “Eu nunca vi alguém sofrer tanto. Os funcionários se incomodavam quando ela pedia alguma coisa. Se irritavam quando ela tentava se equilibrar na maca. Judiaram muito da minha mulher”, lembra.
Em meio ao sofrimento, a família conseguiu, sem intermediação do poder público, uma possibilidade de transferência para o Hospital Geral Ana Nery, na Caixa d’Água.
Porém a vaga que poderia ter salvado a vida de Aurenita teria sido recusada pelo centro de saúde. “Disseram que não era nossa obrigação ficar procurando vaga, que isso era papel do estado. Me senti impotente. Queira tirar ela daquele lugar onde estava sofrendo tanto”,conta a filha Eliaci Oliveira Santos.
O diretor do centro de saúde, Gilberto Lucas, informou que a unidade encaminhou todos dos dias o pedido de regulação (transferência) ao estado. Ele alega que, por falta de vagas, a paciente só foi transferida dia 23. Por “coincidência”, na mesma data que a família diz que houve a queda.
Além disso, o gerente afirma que no livro de ocorrências da emergência não há indicativo de que a paciente tenha caído da maca. “Ela estava na única sala de reanimação que temos enquanto aguardava transferência para um hospital. Estranho falar em queda, pois a maca tem grades”.
A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) informou que no sistema de regulação, dia 23, o centro de saúde indicou que a paciente teria recebido alta. Contudo, no mesmo dia ela deu entrada no Hospital Geral do Estado - transferida do centro de saúde.
No HGE, a paciente foi submetida a uma avaliação neurológica, em função da queda, e faleceu na sala de triagem antes de poder ser internada. A subcoordenadora de urgência e emergência da Secretaria Municipal da Saúde de Salvador, Ana Paula Matos, apesar de não reconhecer que a paciente caiu da maca, garante que a secretaria irá apurar o caso. A família entrará com uma representação no Ministério Público da Bahia (MP-BA) para cobrar as responsabilidades.
Fim do amor de uma vida inteira
Nascida em Jaguaribe, uma ilha localizada 243 km ao sul de Salvador, Aurenita Maria Oliveira Santos teve sua trajetória marcada pela adversidade e miséria.
Passou sua infância catando mariscos ao lado de sua mãe, Alda Madalena Costa, e tendo que dividir comida com seus nove irmãos, fruto de dois relacionamentos de seu pai, Eduardo Manoel de Oliveira.
Cansada da vida difícil, aos 15 anos resolveu se mudar para a capital. A falta de estudos só permitiu que ela trabalhasse como empregada doméstica, ofício que foi seu ganha-pão durante quase 15 anos.
Mas, a força de um amor deu um outro rumo para seu caminho. Depois do serviço, ela gostava de passear no parque onde funcionava a antiga rodoviária da cidade, no bairro das Sete Portas.
O encontro como jovem pedreiro, Pedro Batista Santos, aconteceu como nas mais belas cenas do cinema, onde o galã vê a mocinha e faz uma bela declaração romântica.
O casal começou com um flerte quase que diário até o início oficial do namoro. O passo para o casamento foi rápido. Em menos de um ano já estavam vivendo juntos, em uma casa no bairro de Pernambués.
Com o nascimento do primeiro filho, Ismael Oliveira Santos, Aurenita passou a assumir a função que a deixava mais feliz: a maternidade. Um ano depois, nasceu a única filha mulher do casal, Eliaci Oliveira Santos.
Logo no ano seguinte, nasceram os gêmeos Israel e Isael. Em seguida, foi a vez de oficializar o casamento, no dia 21 de junho de 1982 - com direito à véu, grinalda e ao nascimento de outra criança nove meses depois, Pedro.
A família morou em vários bairros da Avenida Suburbana até fixar moradia em Alto de Coutos, onde vive há 19 anos. Ela vendia geladinho e chegou a ter uma pequena mercearia, para ajudar a complementar a renda da família. Os seus últimos dias de vida foram com sua filha Eliaci e o marido, na casa ao lado da barbearia da família, onde trabalha o marido Pedro Batista.
140 horas de sofrimento
19/5 - Em casa, Aurenita sentiu dores no peito e teve alta de pressão. Foi levada pelo Samu para o Hospital Geral do Estado, que estava lotado. Depois, foi para o Hospital João Batista Caribé, também sem vagas. Foi transferida para o Centro de Saúde Adroaldo Abergaria (Periperi).
20/5 - A paciente fica na sala de reanimação do posto em uma maca com 40cmde largura. O local é usado para atendimentos rápidos de pacientes com parada respiratória. O quadro de saúde tem agravamentos e Aurenita é sedada pela equipe médica.
21/5 - A família da dona de casa localiza vaga no Hospital Geral Ana Nery, bairro da Caixa d’Água, mas o centro de saúde não reconhece a existência do leito. Aurenita permanece no posto aguardando transferência para uma unidade de terapia intensiva.
22/5 - Paciente continua no centro de saúde aguardando vaga para transferência. Médicos dizem que no dia seguinte irão retirar o aparelho de ventilação e manter a paciente em observação. Ela reclama de dores no corpo por causa da acomodação na maca estreita.
23/5 - Filho pede para enfermeira olhar a mãe enquanto ele vai ao banheiro. Quando retorna, encontra a mãe caída no chão. Às 9h, a equipe do centro de saúde avalia a paciente e diz que não teve danos com a queda. Às 23h, médicos do Samu fazem transferência para o HGE.
24/5 - Médicos do HGE indicam cirurgia para conter efeitos do traumatismo provocado pela queda. Alta na pressão e complicações renais impedem a realização do procedimento. O médico Hélio Paulo de Matos Jr. constata a morte por traumatismo crânio-encefálico.
Centro de Saúde de Periperi não tinha lençol para paciente
No período em que ficou internada no Centro de Saúde Adroaldo Albergaria, em Periperi, a dona de casa teve que usar a roupa de cama de sua própria casa porque a unidade não forneceu o material. “Tivemos que utilizar nossas peças do enxoval de casamento como forro da maca”, desabafou Pedro Santos, marido de Aurenita.
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