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domingo, 11 de abril de 2010
A Ética Médica e o Respeito às Crenças Religiosas
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* Zelita da Silva Souza
** Maria Isabel Dias Miorim de Moraes
O respeito à autonomia do paciente estende-se aos seus valores religiosos. Tais valores não
podem ser desconsiderados ou minimizados por outrem, em particular pelos profissionais de saúde,
a despeito dos melhores e mais sinceros interesses destes. Ademais, os valores
religiosos podem ser uma força positiva para o conforto e a recuperação do paciente se ele
estiver seguro de que os mesmos serão respeitados.
UNITERMOS _ Valores, respeito às crenças, autodeterminação
As crenças religiosas estão entre as mais acalentadas convicções do ser humano, cuja vida é tremendamente influenciada por sua visão dos atributos de Deus (soberania e onipotência), dos atributos das outras pessoas (a santidade da vida) e da sua relação pessoal com Deus (comunicação e obediência aos mandamentos). O respeito mútuo às convicções pessoais faz com que haja uma relação pacífica entre as pessoas na atual sociedade pluralista em que vivemos.
Exatamente por causa do pluralismo, devemos esperar que haja discordâncias de opiniões, inclusive em assuntos de tratamento de saúde. Os conflitos sobre decisões quanto ao que e como tratar freqüentemente resultam de diferentes percepções dos fatos, emoções ou valores culturais e, naturalmente, religiosos da pessoa enferma. Quando o enfermo discorda por motivos religiosos do curso de tratamento proposto pelo médico, pode haver o conflito ético e moral entre as convicções do médico e as suas, sobretudo se o médico crê firmemente que o tratamento que está recomendando é melhor para o referido caso.
Porém, respeitar as convicções religiosas do paciente adulto e capaz equivale respeitar a autonomia e autodeterminação individual. O respeito à autodeterminação fundamenta-se no princípio da dignidade da natureza humana. (...) O respeitar a pessoa autônoma pressupõe a aceitação do pluralismo social (1).
A importância das crenças religiosas
Por ser inerente à natureza humana, sustentar convicções e crenças pessoais é reconhecidamente um direito humano fundamental. Sob o prisma dos direitos humanos, o fato está contemplado pelos princípios estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, exarada em 10.12.1948, que expressamente estabelece no seu inciso XVIII: "Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular" (2).
A Constituição Federal protege este direito de todos os cidadãos. A liberdade de consciência e de religião "é, de per si, um dos direitos fundamentais", conforme está no 'caput' do art. 5º da Constituição em vigor. Mais do que isto, "é ela, para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto de todos os direitos naturais. Realmente, é ele a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade" (3).
Na questão de liberdade e direitos humanos fundamentais, o Concílio Vaticano II emitiu a Declaração sobre liberdade de religião, a qual proclama que todas as pessoas têm o direito fundamental à liberdade e uma inerente liberdade de não serem coagidas com dignidade humana. Devine indica que a questão de recusar um tratamento médico por causa de convicções religiosas está incorporada no princípio teológico destacado no Concílio Vaticano II. "a Declaração sobre Liberdade de Religião [promulgada] pelo [Concílio] Vaticano II, proclamou que todas as pessoas têm um direito fundamental à liberdade de religião e uma liberdade inerente da coerção, baseada na dignidade humana" (4).
No contexto da tomada de decisões relacionadas com o tratamento médico, Devine cita a obra Ethical and Religious Directives for Catholic Health Facilities, na qual bispos dizem que "o bem total para o paciente, que inclui seu mais elevado bem espiritual e físico, é a preocupação primária daqueles a quem se confiou a direção das instituições católicas de saúde". Em adição, Wreen (5) propôs que as razões religiosas para a recusa de tratamento são "especiais" e devem ser consideradas de modo diferente de outras razões oferecidas por pacientes. Em harmonia com Wreen, Orr e Genesen (6) escrevem que o que torna especiais os valores religiosos "é não somente o fato de que eles são partilhados por uma comunidade, mas, o que é mais importante, que eles são incorporados pelo indivíduo na sua pessoa. Os valores religiosos, portanto, são mais intrínsecos do que outros valores partilhados, porque eles tratam do próprio significado da vida".
O consentimento esclarecido
Para que o paciente tenha condições de decidir se um tratamento médico lhe é aceitável segundo o "seu próprio plano de vida (...), embasado em crenças, aspirações e valores próprios", ele precisa ser corretamente informado das intenções e recomendações de seu médico e ter uma visão clara de como tais recomendações afetam seus próprios valores. Então, é dada ao paciente a possibilidade de consentir ou não no tratamento proposto.
Segundo Segre (7), o consentimento esclarecido (ou informado) é uma expressão do "ato autônomo". Este ato é caracterizado como "uma decisão, e um ato, sem restrições internas ou externas, com tanta informação quanto o caso exige, e de acordo com a avaliação feita por uma pessoa no momento de tomar a decisão".
O consentimento esclarecido está na pauta das discussões sobre ética médica na atualidade e o propósito de se requerer este consentimento é o de promover a autonomia do indivíduo na tomada de decisões com relação a assuntos de saúde e tratamento médico. O direito de consentir ou recusar está baseado no princípio do respeito à autonomia. Para o consentimento ser uma autorização válida, ele deve ser baseado na compreensão e ser voluntário (8).
A doutrina do consentimento esclarecido é, na verdade, uma doutrina jurídica que apóia muitos dos nossos ideais sobre direitos individuais. Mas a ênfase indevida nas suas origens e funções jurídicas pode eclipsar o fato de que o consentimento esclarecido não é meramente um conceito jurídico, mas também _ e sobretudo _ ético e moral.
Na tomada de decisão em conjunto quanto a que tipo de tratamento um paciente receberá, ou se é que receberá algum tratamento, o papel do médico será o de explicar as várias opções de diagnóstico ou tratamento que existem para aquele caso e os riscos e benefícios de cada uma delas. Um "padrão subjetivo" requer do médico uma abordagem informativa apropriada a cada indivíduo (1). As informações partilhadas devem incluir _ mas não se limitar a _ objetivos diagnósticos e terapêuticos, os riscos envolvidos no procedimento, alternativas existentes e possibilidades de êxito do tratamento.
Até que ponto aplicam-se os princípios do consentimento esclarecido à recusa de tratamento médico por motivos religiosos? Meisel e Kuczewski escrevem que a abordagem descrita acima "é bastante apropriada para certos casos, tais como para as recusas de tratamento feitas por adultos capazes e baseadas em convicções religiosas" (9). Portanto, quando o processo de decisão é assim partilhado, o profissional de saúde age eticamente e demonstra respeito às crenças religiosas e demais valores de seu paciente.
Há várias religiões cujos princípios podem conflitar com alguma forma de tratamento médico ou com o tratamento médico em geral. O caso das Testemunhas de Jeová ilustra a aplicação dos princípios acima tratados.
Por uma questão de consciência religiosa as Testemunhas de Jeová recusam transfusões de sangue alogênico, mas não recusam o tratamento médico em geral. De acordo com Smalley, "provavelmente, o aspecto mais bem conhecido das crenças das Testemunhas de Jeová no campo da bioética é a posição delas quanto ao uso de sangue. Elas entendem que a Bíblia proíbe os cristãos de manterem sua vida por meio da utilização de transfusões de sangue... [Passagens bíblicas específicas] sustentam que o abster-se de sangue é moralmente tão importante para o cristão quanto o abster-se da idolatria ou da imoralidade sexual" (10).
No entanto, o entendimento religioso das Testemunhas não proíbe de modo absoluto o uso de componentes sangüíneos, como a albumina, as imunoglobulinas e os preparados para hemofílicos; cabe a cada Testemunha decidir individualmente se deve aceitar esse tipo de tratamento (11). Da mesma forma, a circulação extracorpórea e a hemodiálise são prontamente aceitas, desde que se use como primer soluções isentas de sangue (12).
Quão importante é esse assunto para as Testemunhas de Jeová? Elas admitem que "a questão (...) envolve os princípios mais fundamentais sobre os quais [as Testemunhas] baseiam suas vidas. A relação com seu Criador e Deus está em jogo" (13). As crenças das Testemunhas de Jeová _ que recusam transfusões de sangue por motivos religiosos ou médicos _ servem de fundamento para um sistema moral, para um conjunto de juízos deontológicos sobre o que se deve ou não fazer. Segundo este sistema, a recusa às transfusões constitui uma regra de conduta a ser observada, ainda que a sociedade a ignore ou menospreze.
O Código de Ética Médica
No entanto, tais posições podem gerar um conflito entre a consciência do paciente e a do médico. O artigo 56 do Código de Ética Médica muitas vezes tem sido citado para apoiar a idéia de que o médico pode desrespeitar as decisões feitas de antemão pelo paciente no que tange ao seu tratamento de saúde, e praticar um ato médico que o paciente considera impróprio para si, se o paciente estiver em iminente risco de vida.
A razão para essa desconsideração para com as crenças individuais, segundo alguns pensadores, seria a beneficência. Porém, Sprung e Eidelman escreveram que a "beneficência requer que o médico faça o que beneficiará o seu paciente, de acordo com a visão do paciente e não com a visão do médico"(14). Nesse sentido, portanto, o respeito à autonomia e a beneficência contribui harmoniosamente pelo bem-estar do paciente como um todo.
Segundo Cohen, o artigo 56 do Código de Ética Médica "seria menos conflitivo se fosse retirada a salvaguarda `salvo em iminente perigo de vida'. A vida é um valor absoluto e próprio do indivíduo, portanto ela deverá ser respeitada tanto frente ao iminente perigo de vida quanto nas decisões sobre saúde"(15).
Entretanto, por uma questão de lógica e ética, seria totalmente inadequado que o profissional de saúde, consciente ou inconscientemente, reagisse à recusa de um paciente no sentido de privá-lo de tratamento médico ou algo que lhe seja de direito receber.
Suicídio?
Para algumas pessoas, contudo, talvez seja difícil acatar a recusa de um tratamento médico com base em princípios religiosos, pois pode parecer um ato de suicídio e, naturalmente, o suicídio é algo que dificilmente será aceito pela sociedade e pela Medicina.
Garizábal escreveu que atribuir a idéia de suicídio aos casos de recusa de transfusões de sangue é fruto duma "confusão". Ele escreve: "O mero fato de recusar um tratamento não pode ser considerado como uma maneira de morrer. O suicida que deseja morrer (...) cumpre a decisão de acabar voluntariamente com a vida. Ao contrário, e por fidelidade à sua consciência, abster-se de usar um meio curativo não significa a intenção de matar-se. Sua vontade é outra" (16). Na verdade, ao escolher tratamento isento de sangue, as Testemunhas de Jeová não estão exercendo o direito de morrer, mas o direito de escolher a que tipo de tratamento se submeterão.
A nossa Unidade de Hematologia do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina _ UFSC procura conciliar o tratamento médico e o respeito às crenças religiosas dos pacientes, provendo-lhes um tratamento de qualidade dentro do que lhes é moralmente aceitável. Existem mais de 150 centros no mundo que empregam tratamento médico e cirúrgico sem transfusões de sangue. A forma de tratamento sem sangue constitui um desafio científico, como tantos outros, que tem impulsionado grandes avanços na área médica.
Watts também descreveu suas experiências com as Testemunhas de Jeová como altamente positivas. "Creio que tive benefícios com a experiência e que talvez tenha me tornado um cirurgião um pouco melhor"(17). Explicando que operou centenas de Testemunhas, incluindo cirurgias de esofagectomia e prostatectomia, acreditando que os pacientes se recuperaram melhor do que aqueles que foram transfundidos.
Conclusão
O respeito à autonomia do paciente deve estender-se aos seus valores religiosos. Tais valores não podem ser desconsiderados ou minimizados por outrem, sobretudo pelos profissionais de saúde, a despeito dos melhores e mais sinceros interesses destes profissionais. Certamente, os profissionais de saúde estarão agindo dentro dos limites da ética médica ao respeitar as crenças religiosas de seus pacientes, provendo-lhes tratamento médico compatível com tais crenças. Os valores religiosos podem ser uma força positiva para o conforto e recuperação do paciente se ele estiver seguro de que seus valores serão respeitados.
Abstract _ Medical Ethics and Respect to Religious Faith
The respect to patient autonomy is extended to his/her religious values. Health professionals, in particular, in spite of their best, sincere interests cannot minimize or set these values apart. In addition, religious values may be a positive force for patients' comfort and recovery if they are sure that they will be respected.
Referências Bibliográficas
1. Fortes PAC. Reflexões sobre bioética e o consentimento esclarecido. Bioética 1994;2:129-35.
2. Nogueira STA. Caso clínico (comentários). Bioética 1996;4:97-105.
3. Ferreira Filho MG. Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue (parecer). Cesário Lange, SP: Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1994.
4. Devine RJ. Save the body, lose the soul. Health Prog 1989;Jun:68-72.
5. Wreen MJ. Autonomy, religious values, and refusal of lifesaving treatment. J Med Ethics 1991;17:124-30.
6. Orr RD, Genesen LB. Request for "inapropriate" treatment based on religious beliefs. J Med Ethics 1997;23:142-47.
7. Segre M. Situação ético-jurídica da Testemunha de Jeová e do médico e/ou instituição hospitalar que lhe presta atenções de saúde, face à recusa do paciente-religioso na aceitação de transfusões de sangue (parecer). São Paulo: Instituto Oscar Freire, 1991.
8. Cohen C, Marcolino JAM. Relação médico-paciente. In: Segre M, Cohen C. Bioética. São Paulo: EDUSP, 1995: 51-62.
9. Meisel A, Kuczewski M. Legal and ethical myths about informed consent. Arch Intern Med 1996;156:2521-6.
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