quinta-feira, 4 de junho de 2009

aspectos jurídicos da hemotransfusão


ASPECTOS JURÍDICOS DA HEMOTRANSFUSÃO

O caso específico de religiosos que não aceitam tratamentos que envolvam infusão de sangue integral em virtude de suas crenças traz à tona temas fundamentais como o direito do paciente à escolha terapêutica e principalmente o direito à vida constitucionalmente defendido. Assim, o presente artigo visa considerar brevemente tais temas.

De modo geral, pacientes que não aceitam sangue como tratamento são pessoas que prezam sua vida. Pessoas esclarecidas que são, procuram tratamento médico sempre que dele necessitam, reivindicando não o "direito de morrer", como de forma sensacionalista vez por outra se alega, mas apenas que desejam receber um tratamento de qualidade, porém isento de hemotransfusão.

O direito do paciente que não aceita sangue por convicções religiosas não é diferente do direito de qualquer pessoa de escolher o tipo de tratamento médico que deseja para si, o que se baseia nos princípios constitucionais do direito à vida e livre disponibilidade, dignidade, liberdade de consciência e crença, liberdade de culto, não privação de direitos por motivo de crença religiosa e privacidade.

À luz da Constituição Federal, o paciente tem pleno direito de recusar um determinado tratamento médico, com fundamento no artigo 5º, II, que reza que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo (autonomia da vontade), salvo em virtude de lei (legalidade). No caso em tela, como não há lei que obrigue a optar por transfusão de sangue como tratamento para determinados casos, a recusa será legítima e deverá ser respeitada. E se não há lei que determine, não será o Judiciário - e muito menos a classe médica - que determinará tal procedimento, salvo por consentimento do paciente. Aliás, um dispositivo legal neste sentido seria absurdo tendo em vista os métodos de tratamento alternativos, inclusive em emergências.

Vale dizer que a recusa a determinados tratamentos que se baseie estritamente em convicções religiosas ou filosóficas deve ser respeitada da mesma forma, por imposição dos incisos VI e VIII do artigo 5º da Constituição Federal, que garantem a liberdade de crença e consciência.

Em suma, ainda que não seja a opção terapêutica preferida pelo médico, prevalece a vontade do paciente acima da decisão puramente técnica e profissional, por força dos preceitos constitucionais aqui considerados. E não são poucos os meios alternativos de tratamento sem sangue atualmente disponíveis, conforme mais abaixo serão elencados.

Pois bem.

Vez por outra se tem falado sobre situações em que o paciente se encontra em risco de morte e mesmo assim não aceita a transfusão de sangue. A esse respeito, nota-se que a antiga tradição jurídica, em alguns casos, continua a reconhecer a vida como o bem supremo e indisponível, sendo que, havendo um suposto conflito entre direitos fundamentais, como por exemplo, vida e liberdade religiosa, aquela sempre prevalecerá.

Todavia, sabemos que tal discussão é simplista e ultrapassada, de maneira que os casos de emergência e risco de morte não alteram em hipótese alguma os direitos constitucionais do paciente, que se concentram essencialmente no PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, pilar de nossa ordem constitucional.

A esse respeito, INGO WOLFGANG SARLET leciona que a qualificação da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental da Constituição da República de 1988, "constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica". Este preceito corresponde ao fundamento do princípio do Estado de Direito e vincula não apenas o administrador e o legislador, mas também o julgador e o operador do direito.

Assim, podemos concluir que a Constituição, ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, não quis proteger somente seu aspecto material, a integridade física, mas também os aspectos espirituais que envolvem a vida de uma pessoa.

Tal princípio, disposto lá no art. 1.º, III, da Constituição Federal se manifesta em todos os outros princípios fundamentais, inclusive no direito à vida. Ao comentar a norma constitucional sob epígrafe, ALEXANDRE DE MORAIS consigna que "o direito à vida e à saúde, entre outros, aparecem como conseqüência imediata da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil."

Na mesma esteira de raciocínio, o professor PEDRO LENZA, na sua aplaudida obra "Direito Constitucional Esquematizado", chama a atenção para o fato de que o direito à vida, conforme previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, abrange tanto o direito de não ser morto, como também o direito de ter uma vida digna.

Ainda, faz-se oportuno o comentário de JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES: "Acreditamos, no entanto, que o direito à vida vai além da simples existência física. (...) O direito à vida que se busca através dos Direitos Humanos é a vida com dignidade, e não apenas sobrevivência. Por esse motivo, o direito à vida se projeta de um plano individual para ganhar a dimensão maior de direito (...), sendo, portanto, a própria razão de ser dos Direitos Humanos"

Assim, o direito à vida, constitucionalmente defendido, envolve não apenas os elementos materiais e biológicos da pessoa, mas também os morais, emocionais e espirituais, que certamente lhe serão atingidos caso seja procedido o tratamento com o uso de sangue sem seu consentimento.

Isto porque, para os religiosos que acatam tal entendimento, esta questão envolve os princípios mais fundamentais nos quais se baseia sua vida, sendo a recusa às transfusões uma regra de conduta a ser observada, ainda que a sociedade a ignore ou menospreze. São exatamente estes princípios íntimos pessoais que a Constituição Federal está a proteger fundamentalmente.

Em suma, ao recusar um tratamento com hemotransfusão, o paciente não está fazendo nada além de invocar o próprio direito constitucional à vida, uma vez que esta engloba também os direitos de personalidade como dimensão imaterial, sendo conceitos pessoais que decorrem dos valores e cultura de cada um. Os aspectos imateriais ou espirituais são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição de pequena significação, sem diferenciação dos demais animais.

Sendo assim, os direitos fundamentais não devem jamais se sobrepor, mas sim serem aplicados em conjunto, visando o preceito maior garantido pela Constituição, que é a dignidade da pessoa. Em termos práticos, o resultado final da prestação jurisdicional e da terapia médica a ser aplicada deve ser a dignidade e bem estar do paciente aliadas à cura.

É digno de nota que considerável parcela da classe médica, em respeito aos direitos acima definidos e aos princípios bioéticos da autonomia, do consentimento informado e da beneficência, vem desenvolvendo técnicas capazes de equilibrar os métodos terapêuticos com a vontade do paciente.

O princípio da Autonomia, é aquele que visa reconhecer o direito da pessoa humana de decidir acerca da utilização de determinado procedimento ou tratamento médico, livre de interferência ou pressão externa, levando em conta seus valores mais íntimos. O princípio do Consentimento Informado determina que, antes de uma intervenção, o médico deve esclarecer ao paciente os benefícios e riscos da terapia (bem como alternativas), deixando com que o enfermo expresse seu consentimento para o tratamento que considera ser o mais adequado aos seus interesses.

A legislação pátria, atenta ao princípio do consentimento informado e ao princípio constitucional da dignidade, positivou no artigo 15 do novo Código Civil, no capítulo que tutela os direitos à personalidade, que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica".

Tal artigo merece ser explorado com maior cautela uma vez que traz uma inversão da responsabilidade civil dos médicos, contrariando o que até a pouco tempo era visto como absoluto: a responsabilidade médica em salvar a vida do paciente a qualquer custo.

Ensina o saudoso mestre SILVIO RODRIGUES que tal regra deve ser vista sob dois ângulos: para o paciente, se situa no campo dos diretos da personalidade; para o médico, no campo da responsabilidade civil, constituindo-se mandamento ao médico para "que nos casos graves não atue sem expressa autorização do paciente". Observe-se que, pela nova regra do código Reale, o pressuposto para que o médico não atue sem o consentimento do paciente é a própria gravidade da situação em si, de maneira que não será o caso emergencial ou a situação gravosa que lhe permitirá agir sem o consentimento.

As conseqüências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo que responderá por perdas e danos. Por este artigo, o risco de morte do paciente cria a obrigação do médico de colher o seu consentimento sobre o método terapêutico a ser aplicado, sob pena de responder civilmente pelos danos aos seus direitos de personalidade que o tratamento forçado pode causar.

Elucidando ainda mais a questão, o professor SILVIO ROMERO BELTRÃO comenta que "(...) o papel do médico, na tomada de decisão quanto a que tipo de tratamento que um paciente receberá ou se é que receberá algum tratamento, é explicar as várias opções de diagnóstico ou tratamento que existem para o caso em concreto e os possíveis riscos de cada um desses tratamentos"

No mesmo sentido, é de se observar que o artigo 17 do Estatuto do Idoso assegura àqueles que estiverem no domínio de suas faculdades mentais o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

O mencionado Estatuto não faz referência ao risco de morte como condição para obstar o seu assegurado direito de opção terapêutica, de maneira que estando o idoso no domínio de suas faculdades mentais (ou seja apto como sujeito de direito para prática de seus atos), não importando qual seja o seu estado clínico, tem ele o direito de optar pelo tratamento de saúde.

O parágrafo único do artigo 17 deixa claro ainda que não basta a situação de "perigo de vida" para que a opção de tratamento seja feita pelo médico. É necessário que, antes, ocorra a impossibilidade de manifestação do paciente idoso ou de seus familiares, ou de seu representante legal. Em outras palavras, para que o médico possa agir conforme sua própria decisão, é necessário que se trate de situação de "risco de morte" (conceito subjetivo) e que se evidencie a impossibilidade de saber qual é a vontade do paciente por qualquer outro meio.

No mesmo norte, o artigo 10 da Lei nº 9.434/1997 (Lei de Transplante de Órgãos) privilegia, em seu parágrafo 1º, o consentimento do paciente em qualquer situação, em detrimento da decisão do médico, exigindo o consentimento expresso do receptor, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento.

Assim sendo, mesmo que o paciente se encontre na situação assim denominada "iminente perigo de vida", pode e deve decidir se quer ou não se submeter ao transplante.

O mesmo raciocínio pode se aplicar aos casos de cirurgias radicais, quimioterapia, respiradores mecânicos, administração de determinados medicamentos e, finalmente, a tratamentos que envolvam transfusões sangüíneas, também consideradas uma forma de "transplante" para muitos especialistas.

É digno de nota que a Lei Estadual 10.241/99 garante como direitos do usuário do serviço de saúde no Estado de São Paulo receber informações claras sobre terapias, agregando-se o respeito aos valores éticos e culturais.

Desta feita, fica claro que legislações modernas como o novo Código Civil, o Estatuto do Idoso e a Lei de Transplantes levam em consideração a vontade do paciente, não importando seu estado clínico, positivando assim mecanismos que garantam o seu direito de escolha (seja qual for o motivo) e repelindo a imposição médica e judicial, garantindo assim o princípio constitucional da dignidade da pessoa.

Por derradeiro, pelo princípio bioético da beneficência, o médico deve "fazer o bem" sob a óptica do paciente, o qual é o destinatário da intervenção médica e ainda que o Código de Ética Médica, no seu artigo 46, garanta a sua livre atuação em caso de perigo de vida, este não pode se sobrepor às liberdades públicas e clássicas garantidas aos cidadãos na Constituição Federal.

Aliás, o próprio código de ética da classe médica preconiza em seu artigo 5.º que o médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente, benefício este que a Constituição determina ser digno e total e não apenas biológico ou científico. O mesmo código determina textualmente em seu artigo 1º que a medicina é uma profissão a serviço do ser humano e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza.

Conforme anteriormente citado, fazendo jus ao seu código de ética, um número cada vez maior de médicos está disposto a tratar sem sangue pacientes que o recusam, desenvolvendo técnicas que acabam por beneficiar toda a sociedade, por serem mais seguras e independerem dos estoques cada vez mais escassos e inadequados de sangue homólogo.

As técnicas de intervenção cirúrgica sem sangue consistem basicamente em (1) a preparação pré-operatória, (2) evitar perda de sangue durante a cirurgia e (3) cuidados pós-operatórios.

Dentre os muitos instrumentos disponíveis para ajudar os cirurgiões a reduzir a perda de sangue durante a cirurgia estão o eletrocautério, coagulador por feixe de gás argônico, cola de fibrina, hemodiluição, recuperações intra-operatórias de células, além de outros fármacos que estimulam as funções hemostáticas. Máquinas de recuperação intra-operatória de sangue recuperam e imediatamente reutilizam o sangue do próprio paciente, permanecendo ligadas ao corpo, separando o sangue em seus componentes e reutilizando os que forem necessários.

Nos casos de emergência em que alguém perde muito sangue, os médicos em geral têm duas prioridades: estancar imediatamente a hemorragia e restaurar o volume do sistema circulatório do paciente com algum líquido próprio para isso, como expansores e outros fármacos capazes de temporariamente assumirem uma ou mais das funções normalmente exercidas pelo sangue.

De fato, o sangue é um líquido tão complexo e ímpar para cada indivíduo, que nada o substitui, nem sequer sangue homólogo, de maneira que a infusão de expansores e outros líquidos dá chances ao organismo ferido reagir por si, recompondo seu próprio sangue.

Praticamente todos os fármacos, instrumentos, equipamentos e outros recursos e técnicas podem ser disponibilizados a qualquer unidade de saúde, com a vantagem de seu custo ser mais baixo e uso mais seguro do que o sangue integral, para atendimentos de emergência.

Diante de tantas opções de tratamento, podemos concluir que "a medicina encarou o desafio" e tem desenvolvido métodos terapêuticos alternativos sem sangue, respeitando a dignidade e encarando o paciente como um todo e não só como um ser biológico. Paralelo a isso, a própria legislação tem evoluído para respeitar a autonomia e vontade dos pacientes, como é o caso do novo Código Civil, da lei de Transplantes de Órgãos e do Estatuto do idoso.

Assim, a comunidade jurídica deve estar atenta a tais mudanças na sociedade, fazendo valer os direitos dos cidadãos na sua plenitude e, acima de tudo, respeitando seu direito constitucional fundamental: viver dignamente como ser humano.


BIBLIOGRAFIA

LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 6ª edição, p. 388

MARINI, Bruno, O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídico-bioética, on-line: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641

MORAIS, Alexandre, Constituição do Brasil Interpretação e Legislação Constitucional. São Paulo: Jurídico Atlas, 2003, pág. 1904

QUADROS DE MAGALHÃES, José Luiz, Direito Constitucional. Belo Horizonte: Livraria Mandamentos, 2000. t. 1. p. 189).

RIBEIRO BASTOS Celso, Direito de Recusa e Pacientes, de Seus Familiares ou Dependentes às Transfusões de Sangue, por Razões Científicas e Convicções Religiosas, parecer, 2000.

RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, volume I, 34ª edição, p. 71-72

ROMERO BELTRÃO, Silvio, O Médico e o Respeito às Crenças Religiosas, online: http://www.faculdademarista.com.br/argumentum/volume1/Silvio.htm

"SEM SANGUE: A Medicina Encarou o Desafio", vídeo, Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

WOLFGANG SARLET, Ingo, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 74

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