quinta-feira, 4 de junho de 2009


O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue:

Uma análise jurídico-bioética

No mesmo sentido, o Jornal do Cremesp diz que a interpretação deste artigo é, entretanto, no sentido de poder o médico agir nessas ocasiões, contrariamente a vontade do paciente, e não de dever (obrigatoriedade). (37) (Negrito Acrescentado).

É importante ressaltar que o Código de Ética Médica não pode se sobrepor às liberdades públicas e clássicas garantidas aos cidadãos na Constituição.

Portanto, diante desta evolução principio lógica, concluímos que médicos e pacientes devem num espírito de cooperação buscar soluções e alternativas que "façam o bem", ou seja, não viole a consciência da pessoa humana sob quaisquer circunstâncias. Do que adiantaria lograr um resultado físico mediante o aniquilamento dos valores mais íntimos do indivíduo? Não seria mais razoável buscar meios que curam a enfermidade física do paciente sem ferir-lhe psicologicamente?

O "Princípio da Justiça" consiste em promover, dento do possível, um igualitário acesso dos cidadãos aos bens da vida.

Desta forma, justiça envolve respeitar as diferenças existentes na comunidade, e ao invés de discriminá-las ou segregá-las, deve-se buscar meios de compreendê-las e satisfazê-las. Este dever envolve as Testemunhas de Jeová, a classe médica e o Estado.

As Testemunhas de Jeová fazem a sua parte por buscar alternativas e trazê-las à atenção da classe médica.

A classe médica faz a sua parte por interessar-se por estas alternativas, estudando-as e ampliando o seu horizonte no exercício da medicina. Aliás, o Código de Ética Médica, no seu art.5º, diz que o médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do seu paciente.

O Estado, por sua vez, faz a sua parte por ao invés de impor uma terapia ao cidadão, possibilitar o acesso às alternativas zelando pela saúde pública.

Diante do exposto, concluímos que propiciar um sistema de saúde justo significa possibilitar a satisfação das necessidades dos cidadãos respeitando suas diferenças (as quais envolvem suas crenças e ideologias).


6) – Menores de Idade

A "Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança", adotada pela Assembléia Geral no dia 20 de novembro de 1989, no seu artigo 12, estabelece:

Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança. (38)

De fato, a "teoria do menor amadurecido" (amplamente utilizada no sistema anglo-americano), cada vez mais ganhará importância para a resolução do caso em estudo. O Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, faz uma interessante observação:

Deve-se... levar em conta, em caso concreto, se o jovem já está em condições de emitir vontade consciente, caso em que deverá ser ouvido. E a fortiori se for apenas relativamente incapaz. Essa vontade consciente deverá ser respeitada. Isso porque os conceitos de maioridade e de menoridade hoje se acham turvos, dado o absurdo de o direito pátrio reconhecer como maior para fins políticos o jovem de dezesseis anos, para fins penais o de dezoito, e somente aos vinte e um para outros fins. (39)

Com o advento do Código Civil/02, a maioridade foi antecipada para os dezoito anos. Assim, isto só vem a reforçar o que Ferreira Filho questionou. Do mesmo modo, a faculdade de direito da Universidade de Cambridge (Inglaterra), no artigo "Detentores Múltiplos das Chaves – Tutela e Consentimento Para Tratamento Médico", analisando um caso em concreto, diz que "se a criança dotada de suficiente maturidade há de ter o direito de consentir com o desejado processo de tratamento, é difícil compreender por que se deveria negar a ele ou ela o direito de recusar alguma medicação indesejada". (40)

Muito esclarecedor um julgado da Suprema Corte de Maine que reconheceu o direito de um jovem de 17 anos em recusar a manutenção artificial de sua vida quando entrasse em estado vegetativo:

É um fato estabelecido que em todas as facetas da vida, o ‘menor adquire a capacidade de consentir em diferentes classes de invasões e de conduta nas diversas etapas de seu desenvolvimento. Existe capacidade quando o menor compartilha a habilidade da pessoa mediana para entender e avaliar os riscos e benefícios’... Reconhecemos isto na lei de nosso próprio Estado ao estabelecer diferentes idades nas quais pessoas alcançam a capacidade para consentir na adoção, conduzir um veículo motorizado, comprar cigarros, deixar a escola, votar, casar-se e adquirir bebidas alcoólicas e tomá-las. (41)

O Tribunal de Recursos de New Brunswick (Canadá) reconheceu o direito de um jovem de 15 anos recusar transfusão de sangue:

Em declarações juramentadas anexadas à petição, tanto a Drª Scully como o Dr. Dolan dispuseram que [J.] estava cônscio de seu quadro clínico... ambos acharam que [J.] era suficientemente amadurecido para entender as conseqüências de sua recusa de receber transfusões...

No Canadá, o Direito Comum reconhece a doutrina do menor amadurecido, a saber, de um que é capaz de entender a natureza e as conseqüências do tratamento proposto. Assim sendo, o menor, se amadurecido, tem deveras a capacidade jurídica de dar consentimento para seu próprio tratamento médico. (42)

Em um outro caso, envolvendo um jovem de 15 anos, o ministro Wells, da Suprema Corte de Terra Nova (Canadá), declarou:

Estou convicto de que ele crê de todo o coração que receber transfusão seria errado e que se for forçado a receber sangue na circunstância a que nos referimos seria uma invasão de seu corpo, uma invasão de sua privacidade e uma invasão de todo o seu ser, a ponto de causar um severo impacto sobre a sua força e habilidade de enfrentar essa terrível provação que ele tem de passar, qualquer que seja o desfecho. (43)

Em outro caso no Canadá foi respeitada a vontade de uma jovem consciente de 12 anos (44). A Drª Mary Francês Scully, falando de um paciente seu de 15 anos que recusara uma transfusão, chamou à atenção um detalhe importante que muitas vezes é esquecido por alguns médicos e jurista:

Ao tratar doenças graves, tais como a leucemia mielóide aguda, meu enfoque consiste no que é mencionado nos círculos médicos como um enfoque holístico. Estudos médicos indicam claramente que uma combinação de fatores são importantes para se combater uma doença grave... Os estudos indicam deveras que, sem esta confiança, apoio e atitude mental positiva, os protocolos de tratamento tendem a ser muito menos eficazes...

É minha opinião... que não respeitar a sua vontade seria pôr em sério risco as chances dele de recuperação. De fato, administrar uma transfusão de hemácias para repor as células destruídas pela quimioterapia contra a vontade [do paciente] causaria, na minha opinião, mais dano do que bem.(Grifo nosso). (45)

De fato, enquanto a imposição de tratamentos médicos pode surtir um efeito negativo, por outro lado, ao passo que forem aplicados tratamentos alternativos que respeitem a consciência e as crenças do indivíduo, isto com certeza influirá de forma positiva na recuperação do paciente.

Por fim, não podemos esquecer que o E.C.A. nos artigos 15 c.c 16, II e III, diz que a criança tem direito à liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso. Assim sendo, não há dúvida de que em matéria de tratamento médico, deve-se, sempre que possível, ouvir o menor na medida de sua maturidade.


7. Conclusão

O crescente uso de alternativas médicas às transfusões de sangue vem demonstrando que atender ao caso das Testemunhas de Jeová não é algo fora da realidade. De fato, a compreensão por parte da equipe médica, ao invés do combate, é o caminho para a solução. Ao passo que esses procedimentos se tornarem o padrão, esse tipo de questão deixará de ocorrer por completo.

Antes de impor uma transfusão ao paciente, os médicos e os tribunais devem serenamente analisar se vale à pena passar por cima de sua consciência (a qual desfruta de proteção constitucional), o que aniquilaria sua Autonomia como paciente e ser humano (Princípios bioéticos da Autonomia e do Consentimento Informado). Deve-se levar em consideração os riscos das transfusões e o impacto emocional advindo do desrespeito à intimidade e a dignidade do cidadão.

Do mesmo modo, vimos que respeitar a opinião e a decisão do paciente (ainda que sua visão seja diferente da do médico) é um ato beneficente (Princípio bioético da Beneficência). Todo profissional tem que trabalhar com a realidade de que nem sempre seus clientes concordarão com o seu modo de pensar. Este é um fato natural da vida. Por isso, é de fundamental importância que o médico tenha uma mente democrática, não levando para o lado pessoal, e ser versátil em aprimorar seus conhecimentos.

Assim sendo, esperamos que essas considerações sejam úteis para desfazer alguns preconceitos e tornar a relação médico-paciente mais cooperativa, tendo como alicerce a liberdade e a dignidade da pessoa humana.

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