sábado, 6 de junho de 2009

O Papel do Poder Judiciário na preservação da “Dignidade da Pessoa Humana“


O Papel do Poder Judiciário na preservação da “Dignidade da Pessoa Humana

As camadas de rocha registram a história da terra. Estudar esses registros é estudar Geologia. Similarmente, as decisões judiciais registram a história do Direito. Estudar essas decisões é estudar o Direito e a evolução do pensamento jurídico.

Recentemente, os Tribunais de Justiça dos Estados do Mato Grosso e de Minas Gerais demonstraram que o juiz, em alguns casos, para dizer o que é o Direito, precisa levar em conta a esfera mais íntima de um ser humano - sua consciência. Não é uma tarefa simples para os burocráticos tribunais brasileiros, cujos conflitos são muitas vezes solucionados pelo simples apego ao formalismo e à ritualização de certos atos, em alguns casos influenciados por preconceitos.

É sabido que a posição dos pacientes Testemunhas de Jeová quanto à escolha de tratamento médico sem sangue é um assunto rodeado pelo espectro do preconceito, mesmo nos meios jurídicos, gerando, ainda, muita polêmica.

Entretanto, os acórdãos do TJ/MT e do TJ/MG endossam, sob o enfoque do princípio constitucional da “dignidade da pessoa humana” (art. 1.º, III, da CF), o direito do paciente Testemunha de Jeová de receber tratamento médico sem transfusão de sangue. Tais tribunais proferiram decisões que asseguram o direito de pacientes Testemunhas de Jeová, que usaram os serviços públicos de saúde, de escolher tratamento médico sem hemocomponentes.

No Estado do Mato Grosso, em 2006, um paciente com 70 anos, necessitando submeter-se a uma cirurgia cardíaca, procurou os serviços públicos de saúde locais. Por ser Testemunha de Jeová, o paciente desejava que a cirurgia fosse realizada sem o uso de hemocomponentes. Todavia, como salientado no corpo do acórdão do TJ/MT, “o único médico a fazer cirurgia cardíaca pelo SUS - Sistema Único de Saúde, não domina a técnica de realizá-la sem o risco de se utilizar transfusão de sangue”.

No Estado de São Paulo, a mesma cirurgia era realizada, também pela rede do SUS, sem o uso da terapia transfusional, razão pela qual o paciente iniciou procedimento administrativo na Secretaria de Saúde a fim de obter sua transferência. Indeferido o pedido, o paciente promoveu ação de obrigação de fazer, com pedido de tutela antecipada, solicitando sua transferência a fim de que o procedimento cirúrgico fosse realizado em outro Estado da Federação. Negada a tutela antecipatória, interpôs recurso de agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso.

O Desembargador Orlando de Almeida Perri, analisando as circunstâncias do caso, delimitou o âmbito da matéria ressaltando que “impõe-se esclarecer que não se está a debater ética médica ou confrontação entre o direito à vida e o de liberdade de crença religiosa. O que se põe em relevo é o direito à saúde e a obrigação de o Estado proporcionar ao cidadão tratamento médico que não implique em esgarçamento à sua liberdade de crença religiosa”

Derrubada, portanto, uma tese comumente utilizada sobre conflito entre direitos fundamentais do paciente (vida x liberdade religiosa), pois esse não era o caso.

Sem dúvida, seria estranho sustentar tal tese, porquanto o paciente estava procurando preservar sua vida, tanto que iniciou dois procedimentos (administrativo e judicial) para garantir seu acesso à saúde, porém, levando em consideração suas convicções pessoais. Em nenhum momento as convicções religiosas do paciente colocaram em perigo o seu “direito à vida”.

Focalizando a discussão no princípio da “dignidade da pessoa humana”, o julgador salientou que “não cabe à Administração Pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los.(…) Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispensem-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. (…) Ora, havendo método cirúrgico substitutivo na comunidade médica, tem o recorrente o direito de obter da administração pública o fornecimento de meios para que possa realizar o procedimento fora de seu domicílio.”

No mesmo sentido, em 2007, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais cassou uma decisão de concessão de tutela antecipada que autorizava a realização de transfusão de sangue forçada em paciente adulto e capaz. O caso envolvia um paciente de 19 anos, internado em hospital público para tratamento de câncer no sistema linfático. Realizado o procedimento quimioterápico padrão, a equipe médica prescreveu suporte transfusional. Diante de suas convicções religiosas, o paciente aceitou o tratamento quimioterápico com suporte não-transfusional. O procedimento solicitado seria constituído de cuidados médicos à base de Eritropoetina, hormônio que atua na produção de glóbulos vermelhos, o que evitaria a terapia transfusional.

A equipe médica contatou o Ministério Público que, por sua vez, deflagrou ação civil pública com pedido de tutela antecipatória, alegando basicamente que o paciente correria risco de vida caso não fosse ministrada transfusão de sangue e, em havendo conflito de direitos fundamentais, in casu, vida x liberdade religiosa, o direito à vida deveria prevalecer, sendo a transfusão realizada sem o consentimento do paciente. Concedida a antecipação da tutela pelo juízo de 1.º grau, o paciente recorreu ao TJ/MG.

Mais uma vez o Estado veio em favor do paciente, protegendo sua dignidade como ser humano. Reputando como legítimo o direito do paciente de escolher seu tratamento médico e ciente da existência de tratamento que poderiam evitar o uso de hemocomponentes, o Tribunal entendeu que “(…) o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. (…) É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão;”

Notável a sensibilidade destes Tribunais ao respeitarem a posição dos pacientes Testemunhas de Jeová. Ao consagrarem a dignidade da pessoa humana como o fundamento dessas decisões, os direitos fundamentais envolvidos (vida, liberdade religiosa e acesso à saúde) permaneceram intactos.

Essas decisões demonstram que é preciso repensar a aplicação da teoria a respeito da colisão de direitos fundamentais e a prevalência do bem jurídico maior.

O direito de escolher tratamento médico isento de sangue, motivado por questões religiosas, é uma projeção da dignidade da pessoa humana, qualquer que seja a instituição hospitalar onde o paciente se encontra internado, pública ou privada. Os acórdãos citados esclarecem que os pacientes Testemunhas de Jeová não estavam abdicando de seu direito de viver. Estavam procurando tratamento médico que estivesse em harmonia com sua consciência. E estes tratamentos estavam disponíveis.

Além disso, com o advento do art. 15 do Código Civil, a autonomia do paciente deve ser privilegiada, principalmente quando o procedimento recomendado gerar riscos para a vida ou a saúde. A terapia transfusional não é um procedimento isento de riscos, portanto, deveria ser ministrada somente com o consentimento do paciente.

Destituir o paciente de sua autonomia, nos casos em comento, significaria reduzi-los à condição de mero objeto do Estado ou de terceiros.

Desta forma, os acórdãos comentados lançaram um novo paradigma, uma nova “camada de rocha” na história do Direito. Diante de uma sociedade pluralista, o Poder Judiciário não pode ficar alheio à realidade do reconhecimento dos plenos direitos fundamentais dos cidadãos. Declará-los é o mesmo que postar-se na “camada” mais elevada em que se encontra atualmente o Direito. Fechar os olhos a isso equivaleria a reter o Direito sob diversas “camadas de rocha” do passado, o que é inadmissível.

*Sebastião A. Junqueira - Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Fonte: Site: Jornal Carta Forense
Link: http://www.cartaforense.com.br/materia.aspx?id=1858

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